Livro: Etnomatemática da Amazônia
Amapaense.
Autores: Elivaldo S. Custódio, Eugénia da L. S.
Foster, Israel G. da Graça (organizadores).
Resenha por: Gerson Anderson de Carvalho Lopes
Em 2024 me tornei docente da Universidade do Amapá e
passei a fazer parte do colegiado de Licenciatura em Matemática dessa
instituição. Ali tive a oportunidade de passar a trabalhar com excelentes
professores, muito competentes nos mais diversos sentidos. Um deles foi o
professor Elivaldo Custódio, primeiro autor do livro que hoje resenho. O
professor Elivaldo, além de lecionar muito bem, segundo relatos dos alunos,
também é um pesquisador prolífico, um Leonhard Euler de Macapá!
Essa obra do professor Elivaldo junto aos pesquisadores
Eugénia Foster e Israel da Graça é um compilado de trabalhos realizados junto
com alunos do curso de Matemática em diversas ocasiões. São nove capítulos
abordando diversos aspectos de como a matemática se mescla com características
regionais, passando por atividades artesanais, cultivo e produção de alimentos,
construção civil e naval e até as questões raciais. O último capítulo fecha o
conjunto trazendo uma proposta metodológica para a pesquisa etnográfica.
Essa foi a primeira obra sobre etnomatemática que li,
apesar de eu já ter visto muitas vezes esse tema na forma de posteres e
palestras em congressos de que tenho participado. Nas palavras dos próprios
autores, “o livro oferecerá uma jornada fascinante através das tradições
matemáticas de comunidades tradicionais, ribeirinhas, indígenas e quilombolas,
destacando como os conhecimentos matemáticos são entrelaçados com a vida cotidiana,
a sabedoria ancestral e a preservação do meio ambiente”.
É muito interessante ver como os produtores de farinha e
os produtores de queijo, por exemplo, utilizam os seus equipamentos e os
próprios instrumentos de medida: a balança de rabo, a cuia, a lata, o palmo, a
saca, a bacia, a garrafa, o litro e o balde. Todas essas formas de medir os
autores relacionam em tabelas com as medidas padrão como quilograma, metro e
litro, por exemplo.
A matemática usada pela população das comunidades
pesquisadas, ia desde a aritmética, na realização de cálculos simples
utilizando as quatro operações e a tabuada; a geometria, como ficou muito
evidente na prática dos construtores de barcos e dos pedreiros; a razão e
proporção, por exemplo pelos produtores de alimento na hora de saber quanto se
poderia produzir de farinha ou queijo com certa quantidade de matéria prima; e
a matemática financeira, na hora de elaborar orçamentos e dividir os lucros com
funcionários.
Arriscando-me a uma definição, após a leitura do livro, compreendo
que a Etnomatemática seja a investigação sobre os saberes tradicionais e
populares e a sua relação com o conhecimento científico (sistemático). O método
de pesquisa adotado pelos autores, segundo relatado no livro, foi misto,
utilizando principalmente a observação, a entrevista e a conversa informal. O
principal autor mencionado sobre a Etnomatemática foi o professor Ubiratan D’Ambrósio,
que também é o criador do termo nos anos de 1970. Já a principal autora sobre a
forma de análise dos dados, chamada de Análise de conteúdo, foi a professora Laurent
Bardin.
Também se observou entre as pessoas pesquisadas
conhecimentos relacionados à física, como o constante uso da variável tempo, na
cura do queijo ou na construção de um navio, a “aerodinâmica” (ou “hidrodinâmica”)
no formato do barco para que ele pudesse “cortar melhor a água” (diminuir o
arrasto viscoso), a previsão de quantas toneladas um barco poderia suportar, as
medidas do barco para que ele pudesse suportar “mais peso” (aumentar o volume e,
proporcionalmente, o empuxo), ou a estrutura necessária de uma casa para
suportar o peso de um telhado de madeira.
Também
se observou conhecimentos relacionados à química quanto à fermentação do leite,
como uma das etapas da fabricação do queijo, o uso do fogo para “amolecer” a
madeira que seria curvada para construir o casco de um barco ou ainda o uso do
material (hidrofóbico) para fazer a vedação do barco.
Esses dois últimos pontos, sobre a física e a química, eu
destaquei durante a leitura, não aparecendo eles assim separados no livro, e
sim integrados à matemática. Mas me pergunto, seria esse o caminho para uma
Etnofísica ou uma Etnoquímica? Poderíamos expandir isso até a Etnobiologia?
Um ponto interessante foi a relação dos indivíduos
entrevistados, os colaboradores da pesquisa, com o conhecimento forma. A
maioria deles tinha pouca ou nenhuma formação escolar, sendo que a maioria
largou a escola sem concluir o ensino fundamental, mas alguns declararam, como se
pode ler na página 37, que reconheciam o valor da escola. O colaborador afirmou
que sabia da importância dos conhecimentos escolares para a vivência na
sociedade, o que é muito interessante considerando que nos dias de hoje há uma
crise da valorização da escola, em que o jovem se questiona “por que eu preciso
disso” e cada vez mais passa a não se interessar pelo estudo, optando por
outras carreiras para as quais, supostamente, “não precisarão” deste conhecimento.
Observou-se também a presença do ensino sempre junto ao
trabalho de cada artesão, construtor ou produtor, em que ´é muito comum a
presença do ajudante junto ao mestre que, enquanto trabalha, também ensina e
repassa o seu conhecimento ao aprendiz, mantendo uma cadeia de conhecimentos
tradicionais, integrados à cultura daquela comunidade.
Dois capítulos se dedicam ainda à questão racial e como
ela se relaciona com a Etnomatemática, o que é chamado de Afroetnomatemática.
Trata-se da pesquisa sobre jogos, danças e esportes originários da matriz
africana, por exemplo, que poderiam auxiliar no ensino da matemática (do mesmo
modo que se utiliza o xadrez, por exemplo) além de contribuir, de forma
conjunta, para a valorização da cultura negra. Um dos capítulos se dedica ainda
a observar as matrizes curriculares de cursos de matemática das três
instituições de ensino superior de Macapá (UNIFAP, UEAP e IFAP) para
identificar se há alguma disciplina voltada a essa valorização cultural. Somente
IFAP e UEAP possuem tal disciplina, a qual os autores argumentam que ainda é
pouco dada a relevância do tema. Destaque para a disciplina Educação e
Diversidade, do curso de Matemática da UEAP, que o próprio professor Elivaldo,
autor do livro, ministra.
Finalizo a resenha tratando de abordar a questão
educacional. O próprio livro afirma diversas vezes que a Etnomatemática é
importante para o ensino, pois o aprendizado da matemática de forma
contextualizada é muito mais significativo ao aluno. Além disso, como afirmado
na página 37, quando a comunidade se envolve com os conteúdos escolares, ela
tende a valorizar muito mais a escola e o professor, o que é fundamental para
combater a evasão escolar, por exemplo. O próprio livro traz, na página 74, a
discussão da baixa posição do Amapá nos Rankings educacionais nacionais, e
oferece a matemática como mecanismo de aprimoramento do ensino, o que,
certamente, pode contribuir para melhorar essa situação.
Recomendo a leitura desse livro para todos os
professores, estudantes e demais interessados na matemática. Com certeza é uma
leitura muito proveitosa.
OBS: Alguns erros de escrita foram encontrados ao longo do livro, porém tenho certeza que os autores já estão providenciando a revisão para uma segunda edição.
Macapá, 26
de fevereiro de 2024.
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